Fichamento
Vicente Romano
GARCIA,
Vicente Romano. Ordem cultural e ordem natural do tempo. Disponível em < http://www.cisc.org.br/portal/index.php/pt/biblioteca/finish/18-romano-vicente/55-ordem-cultural-e-ordem-natural-do-tempo.html
>. Acesso em 15 de set. de 2014.
CISC
CENTRO
INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA
Ordem
cultural e ordem natural do tempo
Vicente
Romano Garcia
Vicente
Romano Garcia é doutor em Comunicação Social, pela Universidade de Münster
e doutor em Ciências da Informação, pela Universidade Complutense.
“Na sociedade moderna, a maioria das pessoas vive uma
relação deslocada com o tempo. Ou, dito de outro modo, o tempo as domina. Entre
as numerosas coações às quais o ser humano está submetido, conta também a
do tempo. Quem não se queixa, hoje em dia, da falta de tempo, do que gostaria
de fazer se tivesse tempo, ou seja, se o tempo fosse seu? Um dos paradoxos da
sociedade industrial desenvolvida consiste precisamente em que à medida em que
se tem reduzido a jornada de trabalho, o tempo de trabalho, parece que as
pessoas vão tendo menos tempo livre, isto é, menos tempo disponível para
fazer o que se gostaria. Daí que o domínio do tempo constitua hoje em dia
parte essencial de todo projeto emancipador, de todo projeto que pretenda
transformar as atuais condições de vida e de trabalho no sentido de melhorar
a qualidade de vida de todos e não só de uma minoria.” (GARCIA, 2011. 1)
“Esta ordem cultural
do tempo já não guarda relação alguma com os ritmos naturais do tempo.
Nesta tendência a uma ordem social do tempo manifesta-se toda uma série de
aspectos parciais: precisão ( unidades de tempo cada vez menores ), coordenação
e sincronização social de todos os aspectos da vida segundo medidas abstratas
do tempo, controle, compromissos agendados e pontualidade, universalização
das unidades de espaços pequenos, etc. Expressões como “timing” e “gestão do
tempo” não são resultados casuais desse desenvolvimento. Esta tendência
básica da ordem cultural do tempo é acompanhada dos meios mecânicos de
transporte, dos modernos meios de informação e comunicação, da iluminação
artificial, do ar condicionado etc. Tem havido uma espécie de co-evolução
técnico-cultural concomitante ao desenvolvimento da ordem cultural do tempo. Atualmente
há cada vez mais pessoas separadas da ordem natural do tempo. Os jovens se
deitam quando sai o sol e não quando ele se põe. Há discotecas que abrem à
meia-noite ou mesmo depois. Tempos socialmente definidos como as notícias da
TV, a abertura dos cinemas, dos restaurantes, os feriados etc., marcam a vida
do cidadão atual. Há inclusive grupos sociais que postulam a liberdade das
ordens e da configuração do tempo para cada um: que se possa comprar durante
as 24 horas do dia, como se mantém em emissão permanente as cadeias
televisivas. Pode-se esquiar tanto no inverno quanto no verão, comer fruta
fresca independentemente das estações do ano etc.Mas apesar de tudo a ordem
natural do tempo segue vigente.” (GARCIA, 2011. 4)
“A aceleração do tempo é tal que o futuro condiciona e
determina o presente. Esta circunstância tem modificado a representação do
tempo. Daí que importe cada vez mais utilizar de um modo razoável não só o
tempo de trabalho como também o do ócio, que é, por excelência, o tempo da
comunicação.” (GARCIA, 2011. 4)
“As separações e conexões, começos e conclusões,
ocorrem simultaneamente. Os ritos, cerimônias e símbolos perdem força na
medida em que a ordem temporal separa-se da natureza e do acontecer social.
Esta separação tem raízes na idéia de “progresso” que, em sua versão
atual, carece de conclusão. Sempre há que se seguir avançando. A atividade
humana não tem um objetivo concreto, salvo o do próprio progresso. O
princípio e o fim são determinados pelo ritmo estabelecido pelos seres
humanos, e não pela natureza. O progresso se apropriou do futuro e, com ele,
do tempo. Os términos e a morte não são mais que perturbações do progresso
contínuo.” (GARCIA, 2011. 5)
“Reduz-se o gasto material e emocional, e as tarefas
individuais e sociais trasladam-se a instituições burocráticas criadas; de
fato, desde os aniversários das crianças até os velórios estão hoje nas
mãos de empresas especializadas.” (GARCIA, 2011. 6)
“Assim, por exemplo, se se observa o emprego que os
espanhóis fazem de seu “tempo livre”, o quadro não pode ser mais desolador.
Das quatro horas de que dispõem, mais de 3 horas e meia passam, física e
espiritualmente constrangidos, ante a tela do televisor. Agora, como se sabe, a
televisão isola o indivíduo, o compele a aquisição passiva da cultura e do
conhecimento, causa dependência, desagrega a família, desfigura o humano,
mutila a sensibilidade, obscurece a mente, produz a perda da articulação,
favorece o controle autocrítico da população etc. Daí que o que se pudesse
perder por não apertar o botão e obter entretenimento instantâneo, será
regiamente compensado com o enriquecimento que supõe o redescobrimento de
outras facetas da experiência humana. O ideal humanista exclui a indústria do
entretenimento com conteúdo desumanizador, antisocial.” (GARCIA, 2011. 8)
“Impõe-se um ecotempo, um equilíbrio entre as ordens
cultural e natural do tempo, um freio à vida acelerada atual. Na rapidez tudo
fica demasiado “curto”, nada satisfaz por completo: necessidades pessoais de
afeto e ternura, cultura do debate, discurso linguístico, apresentação
simultânea da imagem. A frustração do inacabado gera estresses e depressões
generalizadas. A psicologia da caça, persecutória, e a psicologia da carreria
competitiva, de ser sempre o primeiro a apresentar-se antes dos demais, baseia-se
na esperança de que se reduzam as distâncias espaciais. Tanto a race of life
de Hobbes como a teoria da evolução de Darwin encerram em si competições
temporais. A caça ao dólar, seguindo a Riqueza de las naciones de Adam Smith
converteu-se na pursuit of happiness ( perseguição da felicidade ). Sim, a
vida é movimento, mas os espaços pelos quais se move estão cheios de
obstáculos. O espaço, o tempo e a mobilidade proporcionam a medida da
capacidade perceptiva individual.” (GARCIA, 2011. 9)
“O certo é que a única maneira de ser livre é entender a
realidade para a dominar. Como disse F. Cordón, a liberdade é a capacidade de
definir a ação conveniente com a máxima previsão possível. Mas a liberdade
humana, a que cada um deve se esforçar por conquistar só pode ser obtida
sobre a máxima cooperação humana. A essência do homem é a conquista
contínua de liberdade em cooperação com os demais.
Sabe-se, a sociedade faz-se cada vez mais complexa e mais
dinâmica. Os acontecimentos sucedem-se com uma densidade e freqüência
crescentes. A acelerada massificação dos meios de informação e dos
transportes faz com que a torrente de estímulos sociais afete praticamente a
maioria das pessoas.
A humanidade parece uniformizar-se com rapidez. Irreflexivamente,
poderia considerar-se que esta abundância de estímulos marca o progresso da
organização social moderna. Mas o desenvolvimento desta não pode medir-se
pela densidade de estímulos sociais novos, mas sim pelo quão adequados sejam
estes estímulos para aperfeiçoar a organização social, para a criação de
um meio humano mais solidário e mais livre.” (GARCIA, 2011. 11)
“A sentença bíblica de que tudo tem seu tempo exige
também respeitar o biotempo dos demais, não lhes roubar seu tempo, nem
tampouco negá-lo quando o necessitam. Ser amável (ou amigo) significa ter
tempo e estar presente quando se requer tempo. Dar biotempo é o presente mais
precioso de todos, porque é insubstituível. (...), então é preciso praticar
o sossego e a paciência, o saber esperar e a tolerância temporal, escutar
antes de falar, para que a maneira como lidamos com o tempo possa melhorar a
qualidade de vida desta sociedade que não dá seu tempo ao tempo. As pessoas
se definem por seu trato com os demais, e a sociedade não pode ser mais humana
do que as formas de tratar a seus membros.” (GARCIA, 2011. 12)
“Antoine de Saint-Exupéry ironiza assim a economia do tempo
no capítulo XXIII de O Pequeno Príncipe:
“- Bom dia, disse o principezinho.
- Bom dia, disse o vendedor.
Era um vendedor de pílulas aperfeiçoadas que aplacavam a
sede. Toma-se uma por semana e não é mais preciso beber.
- Por que vendes isso? perguntou o principezinho.
- É uma grande economia de tempo, disse o vendedor. Os
peritos
calcularam. A gente ganha cinquenta e três minutos por
semana.
- E o que se faz, então, com os cinquenta e três minutos?
- O que a gente quiser...
“Eu, pensou o principezinho, se tivesse cinquenta e três
minutos para gastar, iria caminhando passo a passo, mãos no bolso, na
direção de uma fonte...” (GARCIA, 2011. 13)
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