Gore Vidal, Americano Intranqüilo | |
Amir Labaki |
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Tem gente com Montaigne na cabeceira. Outros, Drummond ou Clarice.
Um amigo lá mantém Proust. Há pelo menos quinze anos, na bagunça ao
lado da cama, sempre tive à mão os ensaios de Gore Vidal, morto aos 86
anos no último dia 31. O tijolaço “United States – Essays 1952-1992”, seu verdadeiro testamento literário, manteve-se ali por mais tempo. No começo deste ano, dei-lhe um descanso e o substitui por “The Last Empire” (2001), que resenhara para a “Folha” quando saiu nos EUA (mas, pena, nunca aqui). Ambos precedem certa monocordia do último Vidal a partir do 11 de setembro, certeiramente destacada por Christopher Hitchens (outra devastadora perda recente) num ensaio algo maldoso recolhido em sua antologia de despedida, o também mastodôntico “Arguably” (também inédito por aqui). De fato, um segundo Bush na Presidência foi demais para os ideais elevados de Vidal para a “República Americana”. Se o “romance de ideias” de Thomas Mann foi assumidamente seu modelo na ficção, no ensaísmo em lingua inglesa não houve herdeiro mais evidente de Edmund Wilson, como frisei há dez anos na resenha citada. Cinema, costumes, literatura, política e história foram seu forte. Deixemos os filmes para o fim. Sobre sexo, como basta ler em “Sexo É Política”, Vidal escreveu com coragem, erudição e franqueza. São notáveis sua recusa em aceitar homossexualismo como definição (há sexo com pessoas do mesmo sexo e com pessoas do outro, defendia) e sua oposição à ideia de uma específica sensibilidade artística ditada pela prática sexual de eleição. Ele separava o joio do trigo em literatura com brilho e rigor, apesar das idiossincrasias, como menosprezar Hemingway e Scott Fitzgerald. Vidal idolatrava Henry James e Italo Calvino, recolocou no cenário americano Dawn Powell e Sinclair Lewis, resenhou devastadoramente a lista semanal de best-sellers do “The New York Times” em 1973. Sua cruzada contra a crítica acadêmica lhe custou caro mas nada tinha de superficial. Neto de um senador, íntimo de “Camelot” (o pequeno círculo em torno de JFK) pela ligação familiar com Jacqueline Kennedy, postulante sem sucesso por duas vezes a um assento como parlamentar pelo Partido Democrata, Vidal entendia o jogo de Washington com o misto de fascinação e cinismo dos “insiders”. Sua crítica ao complexo industrial-militar denunciado já por Eisenhower era inclemente e incansável, como prodigioso era seu domínio em detalhe dos avanços e retrocessos institucionais nos EUA. Nunca consegui progredir na leitura de seus catataus sobre antigas civilizações como “Juliano” (1964) e “Criação” (1981), mas mergulhei com prazer e proveito em algumas de suas “Narrativas do Império” (foram sete, ao todo), principalmente “Lincoln” e “A Era Dourada”. Sua mais famosa peça, “The Best Man” (1960), que voltou há pouco à Broadway, radiografa a cozinha de Washington como poucas obras, dentro ou fora dos palcos (ou da tela, dada a boa versão de 1964 dirigida por Franklin J. Schaffner, no Brasil entitulado com a sutileza habitual “Vassalos da Ambição”). Um dos inspiradores diretos de “The Best Man” retornaria sem máscaras aos palcos de Vidal em “An Evening With Richard Nixon” (1972), uma peça não-ficcional escrita tendo por base citações diretas do então Presidente. Infelizmente muito menos conhecida, é devastadora. Já seu colossal “Lincoln” sobreviveu bem ao saltar das páginas para a TV em 1988. Lincoln e Nixon voltam a marcar presença na telessérie documental “The American Presidency” (1996), escrita por Vidal para a TV britânica. Em três episódios, ele resume a história da República nos EUA a partir de perfis deliciosos de seus mais altos mandatários. É Vidal no ápice de seu jogo. Trabalhar em cinema foi para ele apenas mais um ganha-pão, seja como roteirista (de “Ben-Hur”, sem créditos, a “Calígula”, do qual tentou sem sucesso subtrair seu nome) ou como coadjuvante (“Roma de Fellini”, “Bob Roberts”, “Gattaca”). Ainda assim deixou, com “Quem Faz o Cinema?”, um ensaio obrigatório mas hiperbólico, em defesa dos roteiristas como os verdadeiros “autores” dos filmes. O desprezo que durante décadas externava ao falar de cinema, repetido pontualmente quando de sua viagem ao Brasil em 1987, foi radicalmente revertido em seus últimos escritos autobiográficos. Em “Screening History” (1992), como depois repetiu na abertura de “Point to Point Navigation” (2006), seu segundo livro de memórias, Vidal reconhece logo no parágrafo de abertura: “Como agora me aproximo, graciosamente eu espero, da porta marcada Saída, me ocorre que a única coisa de que gostei mesmo de fazer foi ir ao cinema”. Transposto por ele aquele batente, condenado mesmo para nós o antigo oásis das salas escuras, resta-nos parodiar Billy Wilder sobre a morte de Lubitsch. Pior que perdê-lo é ficarmos para sempre sem novos textos de Gore Vidal. |
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10/08/2012 |
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