Por Danielle Denny
… a frase do jornalista
norte-americano Amus Cummings, ex-editor do The New York Sun (‘se um cachorro
morde um homem, não é notícia, mas, se um homem morde um cachorro, é notícia’)
inscreveu-se na tradição das redações de jornais como uma fórmula adequada à
prática profissional, orientada pelo valor de excepcionalidade, de raridade ou
de ruptura do padrão rotineiro de expectativas quanto aos fatos sociais. (O The
New York Sun, fundado em 1833, é o primeiro exemplo de imprensa massiva nos
Estados Unidos. Foi responsável pela passagem do jornalismo de notas sobre
fatos sociais ou políticos de grande importância para o de notícias do gênero fait-divers do acontecimento miúdo, às
vezes escandaloso.) (SODRÉ, 2009: 20)
O fato
Para começar, Kant: “Os objetos
para conceitos cuja realidade objetiva pode ser provada (seja mediante pura razão,
seja por experiência e no primeiro caso a partir dos dados teóricos ou práticos
da razão, mas em todos os casos por meio de uma intuição que lhes corresponda) são
fatos” (KANT, I. Crítica do juízo, § 91) (SODRÉ, 2009: 28)
O acontecimento
Incorporando a definição
kantiana de fato como conceito para objetos cuja realidade pode ser provada –
e, assim, como um espaço disponível ao observador para atribuição de algum
sentido à ocorrência – somos levados a encontrar outro termo para a representação
social do fato, em especial para a informação jornalística concretizada na
notícia. Esse termo news, (...) bem pode ser o acontecimento. Na prática, pode
ser tomado como sinônimo de fato sócio histórico. Mas enquanto o acontecimento
se pauta pela atualidade, isto por uma experiência singular na temporalidade do
aqui e agora, o fato, mesmo inscrito na história, é elaboração intelectual. (SODRÉ,
2009: 33)
... na televisão ou na rede cibernética,
principalmente, sem a garantia de um jogo correto das fontes, é cada vez mais
difícil separar o imaginário do real ou o verdadeiro do falso... a
micronarrativa produz um conhecimento situado a meio caminho entre o senso
comum e o conhecimento sistemático... senso comum é o nome para o conhecimento
daquilo que os gregos chamavam de doxa, isto é uma experiência da realidade
limitada à sensibilidade, às notas acidentais contingentes e variáveis, às representações
sociais que reduzem a complexidade factual a imagens de fácil trânsito comunicativo
– traduzidas em opinião... A lição implícita do jornalismo, entretanto, é não se
pode fazer pouco caso do senso comum, por ser ele estabilizador da consciência e
mobilizador do pertencimento à comunidade. Por outro lado, o conhecimento
sistemático (metódico, objetivo, desvinculado dos valores etc ) diz respeito à ciência.(SODRÉ,
2009: 45)
...habituados que estamos a
consumir o discurso informativo como uma objetivação dos fatos da atualidade
cotidiana, deixamos de perceber que ali se constitui igualmente uma narrativa das
práticas humanas, cuja função maior é chama a atenção da coletividade para o
modo como tais práticas se organizam ou devem organizar-se dentro de uma delimitação
temporal, de uma periodização. Assim, pode muito bem acontecer que a mediatização
de aspectos críticos de uma determinada realidade social deixe o público em
geral pouco informado sobre o que realmente está ocorrendo (e isto é cada vez
mais frequente em virtude das flutuações da atenção e da memoria coletivas sob
o influxo da mídia), mas ainda assim essa precária memória midiática é capaz de
fazer emergirem novos atores sociais no espaço público, sejam eles os
imigrantes ou os favelados nas periferias (SODRÉ, 2009: 69)
A notícia
... o acontecimento, materializado
na forma noticiosa padrão, é o vetor para uma teoria da instantaneidade ou da
temporalidade singularizada no fato social. Assim, notícia, a anglo-saxônica News
of the day (notícia factual), constitui-se como o relato (micronarrativo) de um
acontecimento factual, ou seja, inscrito na realidade histórica e, logo,
suscetível de comprovação. (SODRÉ, 2009: 70)
... o fato em bruto (o “objeto
atual”) determina o acontecimento, desdobra-se por meio de uma interpretação em
notícia, que é uma estratégia ou um gênero discursivo suscetível de representar
a ocorrência factual primeira e, eventualmente, desdobrar-se em novas interpretações.
Mas são diversos os tempos e os modos de ocorrência implicados na notícia.(SODRÉ,
2009: 72)
Queremos deixar claro que o “paradigma
do cachorro” – o da pura e simples ruptura da normalidade quotidiana ou, em
último caso, a anomalia – não é teoricamente suficiente para definir a notícia.
(...) Para nós, o verdadeiro traço em comum entre o homem que morde o pitbull,
o pitbull que morde o homem, a chegada de uma delegação do FMI ao país e o assassinado
de Kennedy é a marcação (semiótica, cultural) do fato. Esta é uma categoria
oportuna para a compreensão do padrão valorativo do fato, que constitui a notícia.
(SODRÉ, 2009: 74)
Fatos não marcados não significam
fatos sem importância social e sim fatos não imediatamente relevantes para o cânone
da cultura jornalística. São, portanto, normalmente desconsiderados pela marcação
(pauta) da grande mídia, embora tenham alguma chance de aparecer em veículos
alternativos ou serem objeto de análise em publicações de maior periodicidade (SODRÉ,
2009: 76)
A pontuação rítmica
O acontecimento, que movimenta
a vida pública na sociedade moderna, é, assim o aspecto temporal do fato
social. Inscrito na atualidade por meio de um artifício narrativo que o
temporaliza à maneira de um gerúndio ( o tempo do está sendo), ele se
presentifica, ou seja, o passado e o futuro são sentidos como um aqui e agora.
Por isso, a notícia de jornal – no limite, uma reinterpretação histórica do
ritmo interno da narrativa antiga – inscreve desde sempre uma diretiva de construção
do tempo social pela pontuação no ritmo dos acontecimentos, que é de fato o
caminho para a fixação temporal da atualidade num presente. (SODRÉ, 2009: 87)
O efeito SIG (Simultaneidade,
instantaneidade e globalidade) já está definitivamente inscrito na
temporalidade cotidiana, abolindo todas as distâncias espácio-temporais (SODRÉ,
2009: 89)
... dois níveis rítmicos: num
primeiro nível, o que ritimiza o cotidiano são as rotinas, inscritas individual
e coletivamente na vida social; num segundo nível, os acontecimentos, que
pontuam – em diferentes escalas de intensidades – essas rotinas. A menos que
seja totalmente imprevisto (portanto, a ruptura de um contínuo rotineiro, a
exemplo da destruição das Torres Gêmeas), o acontecimento é uma pulsação, suscetível
de tornar-se um ponto rítmico pela marcação do sistema informativo. (SODRÉ,
2009: 90)
SODRÉ, Muniz. A narração do
fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2009. 287 p. ISBN 978-85-326-3844-1.
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